Em carne viva

Cami
2 min readSep 19, 2022

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Fotografia da obra “Língua com padrão sinuoso” de Adriana Varejão (acervo próprio)

As feridas não saram se a gente sempre tira a casquinha.

Percebi isso -que parece meio óbvio agora- enquanto lavava meu cabelo e o shampoo escorria pelo meu rosto, causando uma ardência lacinante na ponta do meu queixo. Eram três espinhas, a princípio, mas eu não seguro minhas mãos e agora são três machucados que não saram.

Tenho ainda essa mania de mordiscar a pele que cresce bem ao lado da unha e acordo noite adentro com dois dedos pulsantes: a pele encravada no canto.

Não suporto pensar no corpo quando ele esparrama. Eu disse. “Um corpo esparramado… O que isso te lembra?”

Lembrei de muitas coisas das quais não falei. Pense você em um corpo que esparrama e no que isso te traz à mente. Recuso Freud e seus estereótipos, mas caio justamente no mais paradigmático de todos: a busca histérica por fazer-se exceção.

Vivo arrancando minha pele, percebi. A pele: esse grande contorno pro que fica dentro — carne, vísceras e coração. O corpo literal é esse do qual nada sei, a não ser pela dor que fica depois.

Meto a unha na ferida. Meto o dente na unha. Borro fronteiras. Deformo contornos. Arranco a pele, mas ela insiste em nascer de novo: eu não controlo a vida. Ela eclode logo ali onde mais recuso. Pus e pele encravada me lembram que o que vem de dentro também causa efeito, num movimento avesso de inscrição.

Tem sempre esse pequeno algo que arde e pulsa incessante, dando voltas no estômago, me deixando febril. Como o grão de areia que entra no olho ou a bolha que sai no dedo do pé.

Não tenho opção, recorro à escrita como última saída: a experiência sublime de despelação. Arranjo um jeito de fazer das tripas literalização.

Da existência nada ouço, nada falo.

Um cogito despedaçado.

Só sei que sou porque arranco a pele, deixo as feridas expostas e sinto tudo em carne viva.

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Cami
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Written by Cami

Em algum lugar entre a realidade e a ficção.

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